São Vicente, 28 de Setembro de 1996.
Hoje pela manhã tive um estranho sonho.
Estava na cozinha de uma casa onde morei quando criança. Havia ali
uma mesa e em pé, à minha frente, do outro lado da mesa eu via meu pai em pé,
de olhos fechados e sentia que ele estava com grandes dificuldades para se
locomover. Quase não se mexia e sua face transmitia-me uma sensação angustiosa,
tanto que lhe peguei nas mãos; pedi que fosse embora dali, sem entender o
porquê dizia isso a ele, apenas pedia:
-Vá embora daqui, pai, por favor!
Até agora não sei o significado disso. Sei que ele desapareceu diante de mim e
me lembro de que nesse instante havia um homem junto dele que desapareceu
também ao mesmo tempo. Ao me voltar para a porta de saída da cozinha para o
quintal, vi um rapaz, conversei algo com ele e não senti medo e nem aquela
angústia de instantes, coisa que estranhei, pois ele me era desconhecido e
àquela figura que se parecia meu pai, eu senti um pouco de medo, medo
desconhecido...
Pois bem, perguntei-lhe o nome e outras informações que por hora não me lembro.
Ao me preparar para sair, chegaram-se à porta muitas pessoas vindas do quintal;
uma mulher com aparência de uns trinta anos ou mais; os outros eram muito
jovens; de cabelos castanhos, lisos, levava uns papéis e uma pasta às mãos. Ela
parou à entrada quando perguntei:
-Quem são vocês?
Ela, pelo que me lembro com certo vagar, me respondeu:
-Somos um grupo de espíritos e nos reunimos sempre aqui.
Como sempre sonho com aquela casa, inquiri:
-Mas como eu nunca os vi aqui?
Ao que ela me respondeu:
-Nós sempre estivemos aqui, todos nós e falamos muito mal de você!
A essa frase ela me olhou com grande cinismo e desdém. Senti algo estranho por
tal explicação, não foi raiva, não tive vontade de vingar-me ou ofende-la,
senti-me como que estupefata e resignada com tal atitude, só pude responder:
-É, isso é o que as pessoas mais fazem na vida, tanto de um lado, como do
outro: falar mal dos outros. Sei que no fundo isso não me abalou sobremaneira!
Ouvi conversas vindas do lado de fora, ao que quase todos foram saindo ao
quintal, chegaram alguns outros com notícias que interessavam à maioria,
parecia se tratar de um grande espetáculo que estava a acontecer nos arredores.
Saí também e ao passar pelo portão de saída, notei que não mais era o portão de
madeira que meu pai fizera quando lá moramos, parecia uma grade de ferro.
Pensei em voz alta:
-Ah! Não é mais o mesmo portão e em silêncio continuei:
-Mas também aqui não é a mesma dimensão (?)...
Saí. Chegando à calçada, a escuridão da noite era grande e quase não
se via a rua, não havia postes iluminando-a. Olhando à esquerda, via-se uma
imponente construção em forma piramidal transparente e iluminada em diversas
cores e algo em frente que parecia uma praça também muitíssimo iluminada. Não
sei se era mesmo muito iluminada, pareciam ser seus próprios contornos feitos
de luz, como lâmpadas de neon coloridos e pela total escuridão do entorno, o
efeito iluminante era maior ainda.
Curiosa, alcei voo para lá. Chegando à entrada, havia guardas na
entrada dos portões. Um guarda me impediu a passagem, o mesmo acontecendo com
outros à minha volta. Muitos reclamaram e também eu, dizendo:
Por que não posso entrar?
Ele disse:
-Aqui não, ninguém pode passar.
Perguntei:
-Tenho que pagar para entrar?
-Não sei, acho que é de graça, pergunte ali ao lado. Olhei à direita e havia
uma entrada menor com uma mulher à frente que anunciava:
-Podem entrar, venham ver o espetáculo!
Começou a enumerar as atrações, as quais eu não me lembro agora.
Quando ultrapassei a linha imaginária
que delimitava o espaço interno, senti que algo estava errado, o belo ficara do
lado de fora, lá dentro a luz desapareceu, o ambiente se tornou sombrio, frio e
a beleza sumira. Nada de grandes atrações. Vi-me num espaço pequeno como um
tanque circular parecido com esses de aquários onde os animais marinhos ficam
em cativeiro. Esse tanque redondo, dividido concentricamente em pelo menos três
partes com paredes mais baixas que a borda, onde me debrucei a tentar
visualizar o que dentro pudesse ter. Andei à sua volta e de qualquer ponto eu
via as três divisões e o fundo onde estavam coisas que me esforcei muito para
enxergar o que fossem. De repente comecei a ver formas que se pareciam animais
que, de início, pensei serem porcos jovens por causa daquela cor rosa-pálida,
depois me pareciam embriões humanos. Num tanque eles eram pequenos e
numerosíssimos, noutro, um pouco maiores e em menor quantidade, no terceiro,
uns poucos e muito grandes. Aos poucos fui enxergando melhor e vi que estavam
todos submersos numa substância que parecia líquido como água evaporando, um
vapor transparente. Não se percebia ali nenhum movimento que se pudesse dizer
que estivessem vivos. O líquido estava absolutamente parado e esses seres,
animais, embriões ou o que fossem também estavam imóveis, inertes, sem vida
aparente. Senti uma enorme decepção pelo meu grande engano, estranho, me sentia
mais decepcionada comigo mesma do que com o engodo a que aqueles seres me
haviam proporcionado. Lembro-me que falei às pessoas ao meu lado:
-Onde está o espetáculo? Aqui não há nada do que prometeram.
-Onde está o espetáculo? Aqui não há nada do que prometeram.
Tomei o rumo da saída dizendo:
-Como podem existir pessoas assim, que enganam os outros dessa maneira?
Balancei a cabeça e as pessoas que me seguiam, também decepcionadas, uma
família, um casal e seus filhos. Eles também falavam muito sobre a falsa
promessa do espetáculo e foram tirar satisfações com a mulher da entrada. Ela
tentou explicar, nem quis ouvir, fui saindo.
O homem dizia:
Onde estão as atrações? Lá dentro não há nada de belo, vou embora e...
Ela não o deixou terminar; eu já estava de costas quando a ouvi dizer que
dentro daqueles tanques também havia “bolas do tempo”, não sei o que são e nem
me interessei em saber, mas parece que essas “bolas do tempo” são coisas muito
interessantes, pois o casal, ao ouvir isso, surpresos perguntaram os dois ao
mesmo tempo:
-Onde?
E ela os encaminhou para dentro novamente dizendo que lhes mostraria como eram
e coisa e tal...
Saí de lá e fui seguindo rua acima até chegar à esquina de uma
bifurcação, ali era mais escuro que qualquer outro lugar com um grande abismo,
na verdade uma enorme cratera muito funda. Olhei para ele e comecei a dizer
apontando para o abismo:
-Faça-se a Luz na escuridão!
-Faça-se a Luz na escuridão!
Espantei-me com tal atitude, pois conscientemente sei que não tenho
poderes para tais coisas, mas ao mesmo tempo, eu não conseguia parar essa voz
de comando. Estranhamente o abismo foi se fechando a cada frase até ficar apenas
uma pequena abertura no chão. De repente, dessa abertura e da terra em volta
começaram a explodir pequenas formas luminosas que se pareciam com pequenos
cogumelos. Apareceram muitas pessoas atraídas pelo fenômeno, pessoas de todas
as idades. Jovens, crianças e velhos não eram muitos, mas nenhuma fase de nossa
vida, da infância à velhice estava ausente; como fosse uma amostragem.
Aquelas pequenas explosões pareciam me alegrar e divertir as pessoas que se
aproximaram do pequeno orifício. Até que senti intimamente algo muito maior
vindo de muita profundidade e tentei alertar a todos que se afastassem prevenindo
que poderia haver uma grande explosão. Algumas pessoas correram. Lembro-me de
ter segurado a mão de um senhor trazendo-o para perto de mim, longe da fenda da
terra.
Aconteceu a explosão. Não foi o que imaginei. Apenas uma matéria pastosa e
esbranquiçada saiu da fenda não atingindo mais de metro de altura; um menino
não ouviu meus avisos e ficou ali em frente ao orifício. Quando a substância
saiu, ele pegou uma capa e protegeu sua cabeça. Depois da explosão a pasta caiu
sobre o menino e se tornou como pedra. Ele tirou a capa de sua cabeça; houve
muito riso por considerarem engraçada a situação do menino, apenas um garoto
não gostou, pois a capa lhe pertencia e se estragou e estragou-se também o
objeto que ela antes cobria.
Fui me afastando dali na intenção de alçar voo. Não conseguia ir muito alto,
parecia que eu estava rente a um edifício e os varais nas janelas me
atrapalhavam com suas roupas.
Uma jovem de cabelos castanho-claros começou a me acompanhar. Eu subia um pouco
na vertical, ela subia e me alcançava. Fiquei intrigada e lhe perguntei:
Por que você me segue?
Ela nada respondeu; apenas me olhou.
Perguntei se tinha dificuldades para voar e se queria ajuda e sem esperar
resposta peguei sua mão para voar pelos céus, mas ela parou e me disse:
-Não podemos voar tão alto! É proibido, o nosso Deus vem e nos
castiga.
Não sei por que eu lhe respondi que não se preocupasse; que não era perigoso;
eu já havia feito isso muitas vezes e que quando alcançava alturas que para mim
não eram próprias, que o meu Deus não vinha pessoalmente me castigar. Eu sentia
e sabia que ele apenas colocava nuvens espessas à minha volta que eu, ao me
sentir desorientada, era obrigada a descer um pouco para enxergar as coisas, os
campos, as cidades, para voltar a saber onde eu estava e com um sorriso eu lhe
falei:
-Não se preocupe, sentindo no meu íntimo que o “nosso” Deus não era um Deus tão
“bravo” e punitivo como disseram a ela.
Eu sentia no meu íntimo que ele me amava e que eu o amava e sabia que muitas
das nuvens que por vezes colocava em meus voos eram por esse mesmo amor, para
que eu não errasse o rumo, tentando obstinadamente percorrer caminhos a mim
ainda impróprios por não conhecer o necessário, mas que certamente, não eram
proibidos.
Sentia-me assim, tranquila, conversando com a jovem desconhecida, não percebi quando tudo se dissipou, quanto tempo se passou, só recordo-me da campainha
tocando, quando me vi impelida a levantar e atender a porta.
Resolvi colocar no papel esse sonho, para, quem sabe, entender algum dia o seu
significado, se é que há algum para ser explicado.
Dulceny Cerqueira Leite